Por André Roncaglia
Desde a aprovação do Regime Fiscal Sustentável, a equipe econômica montou trincheira na meta de zerar o déficit público em 2024. A estratégia visava neutralizar a bomba de nêutrons (na forma de descontrole de juros e câmbio) que poderia vir da Faria Lima e de sua central sindical (Roberto Campos Neto e o Copom herdado de Bolsonaro).
A estratégia de Haddad emulou aquela feita por Henrique Meirelles em 2016, com o advento do teto de gastos. Juros em queda e câmbio controlado aliviariam as restrições financeiras, promovendo expectativas positivas que estimulariam investimentos privados.
Contudo, por se tratar de um governo de esquerda, havia os riscos de o mercado financeiro não acreditar na proposta e de o Congresso relutar em aprovar as medidas da Fazenda.
O mercado comprou, desconfiado, o ajuste fiscal pelo lado das receitas. A Faria Lima tem uma visão contabilista de política fiscal: basta equilibrar as contas, desde que os custos recaiam sobre os outros. Por exemplo, não se viu, na imprensa, qualquer protesto ao custo fiscal do programa Desenrola, que limpou, dos balanços dos bancos, as perdas já reconhecidas com a inadimplência.
Ainda segundo esta visão, declarar compromisso com metas importa mais do que seu cumprimento. Vale lembrar que, ao longo da gestão Guedes, o mercado fez vista grossa para cinco violações do teto de gastos que somaram quase R$ 800 bilhões.
Ao exigir demonstração de esforço em “fazer a lição de casa”, o mercado tenta dar à coerção um véu de consentimento. Com efeito, a Faria Lima tolera Haddad, mas não o apoia em seu ajuste fiscal com justiça tributária. Com a chegada do fim do ano, as dificuldades em recompor a base tributária reacenderam as dúvidas quanto à viabilidade da meta fiscal.
A secretaria do Tesouro Nacional alertou que o déficit em 2023 deve crescer R$ 80 bilhões, devido à frustração de receitas e ao atraso na aprovação das medidas da Fazenda. Apontou também que manter a meta de déficit zero em 2024 exigirá o contingenciamento de R$ 53 bilhões em gastos discricionários.
O cenário de arrocho fiscal levou o presidente Lula a aventar a possibilidade de alterar a meta fiscal para garantir os investimentos necessários à retomada da economia em bases inclusivas e sustentáveis. Lula demarcou, corretamente, seu domínio sobre a política fiscal.
Empolgada com a vitória no caso das metas de inflação, a Faria Lima tenta impor sua meta fiscal. Com surpresa dissimulada, atribui ao presidente descompromisso fiscal, sendo que o mercado já previa descumprimento da meta em 2024. Não há risco sobre o que é sabido!
Metas são aspirações condicionadas ao contexto, não obrigações rígidas. Segundo o Monitor Fiscal do FMI, os países desenvolvidos registram déficits de 3,5% do PIB na média (os EUA, 8,2%). No nosso caso, o déficit primário em 2023 deve ficar perto de 2%. Logo, uma meta de déficit de 1% do PIB, em 2024, mantém o esforço fiscal em prazo mais longo.
Há alguns meses, Campos Neto disse que cumprir a meta de inflação em 2023 exigiria elevar a Selic a 26,5%, o que afundaria a economia. Esta fala, como a de Lula, sinaliza os limites políticos e sociais da austeridade (fiscal e monetária), bem como um olhar de longo prazo para a política econômica.
Um regime fiscal sustentável prioriza os anseios das urnas às pressões dos mercados. Suas válvulas de escape devem blindar os avanços democráticos contra os excessos da tecnocracia, não o contrário.
A política fiscal não ocorre no vácuo. Cortar investimentos e gastos essenciais em meio à desaceleração da atividade implica levar as contas públicas e a economia para o fundo do poço. Já tentamos a austeridade sem limites com o teto de gastos. O resultado foi a intentona fascista de Bolsonaro.
Não repitamos o erro.
André Roncagli é professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP
Publicado na Folha de São Paulo